Com objetivo de informar a população não só sobre doenças cirúrgicas em crianças, mas também sobre temas de interesse para os pais de pacientes, a CIPERJ traz uma matéria especial sobre Ingestão de corpos estranhos.

Conversamos com a Dra. Paula Peruzzi, médica especialista em Endoscopia Digestiva Pediátrica do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) e do Hospital Estadual da Criança (HEC), que explica como os responsáveis devem agir quando uma criança engole uma moeda ou bateria, por exemplo. Ela também deixa um importante alerta para evitar esse tipo de acidente doméstico.

INGESTÃO DE CORPOS ESTRANHOS POR CRIANÇAS: O QUE FAZER?

  • Qual faixa etária está mais exposta ao risco de ingerir um corpo estranho?

A ingestão acidental de corpos estranhos é mais frequente em crianças entre 6 meses e 6 anos.

Com o início da fase oral, os bebês começam a levar os objetos à boca, havendo maior risco de asfixia e ingestão de corpos estranhos. Nem sempre o acidente é presenciado ou reconhecido por um dos responsáveis ou por algum adulto.

Durante a pandemia de COVID-19 houve um aumento nesses acidentes devido a uma mudança abrupta na rotina das crianças e das famílias, com o afastamento dos pequenos das creches e das atividades escolares e menos supervisão do ambiente doméstico, já que muitos responsáveis estavam em casa, mas trabalhando de forma remota.

Um estudo realizado na Inglaterra revelou que esses acidentes passaram a ocorrer 2.5 vezes a mais durante a pandemia de COVID-19, em especial um aumento na ingestão de baterias e imãs, que estão relacionados a uma maior morbi-mortalidade.

Nem sempre o acidente acontece na frente de um dos responsáveis ou de um adulto. Pais e pediatras devem ficar atentos, em especial às crianças pequenas, para sintomas de início súbito, como dificuldade ou recusa alimentar, engasgos, salivação e sintomas respiratórios, como broncoespasmo, estridor e infecção respiratória de repetição.

  • Quais são os casos mais recorrentes de ingestão de corpos estranhos em crianças e quais os riscos envolvidos?

As ocorrências mais comuns envolvem objetos facilmente encontrados no ambiente doméstico (moedas, ímãs, baterias de brinquedos, amendoins e objetos pontiagudos e perfurantes).

O corpo estranho mais comumente ingerido na população pediátrica é a moeda, porém não é o que mais oferece riscos.

Quando uma criança engole uma moeda, a maior parte das vezes esta é eliminada nas fezes em 4 a 6 dias (pode demorar até 4 a 6 semanas). Quando não impactam (ficam presas) no esôfago não costumam causar sintomas ou complicações.

Os corpos estranhos mais perigosos são as baterias, imãs e objetos pontiagudos e perfurantes.

Quando uma criança ingere mais de um imã separadamente, estes podem ser atraídos um ao outro, com a parede de alguma víscera no meio (como se fosse um sanduíche dos dois ímãs com a parede intestinal comprimida no meio), causando fistulização, perfuração, obstrução e/ou vólvulos.

Baterias impactadas no esôfago podem levar a complicações graves como perfuração, mediastinite, estenoses (estreitamentos) tardias e até fístulas vasculares, inclusive fístulas para a artéria aorta (aorto-esofágicas). A bateria lesa o esôfago rapidamente, já a partir de 15 minutos de impactação. As paredes do esôfago servem de “ponte” entre os terminais positivo e negativo da bateria, formando circuito elétrico com geração de radicais livres de hidróxido, um pH muito alcalino no local, culminando em uma queimadura (lesão caústica) e necrose de coagulação. A lesão pode continuar até após a retirada da bateria, podendo haver complicações tardias.

Raio X de bateria no esôfago
Necrose de esôfago em criança após 5 horas de ingestão da bateria

Uma outra causa importante de acidentes em crianças em que a endoscopia digestiva tem papel fundamental no tratamento, é a ingestão acidental de agentes corrosivos, na maioria das vezes materiais de limpeza, como a soda cáustica. Estes acidentes ocorrem no ambiente doméstico, onde muitas vezes os familiares diluem os agentes corrosivos em uma garrafa para realizar algum tipo de limpeza doméstica, deixada ao alcance das crianças. As crianças, mais frequentemente entre 2 e 6 anos de idade, são atraídas pelo líquido colorido, e o ingerem achando que é um suco ou refrigerante.

Este tipo de acidente é mais comum do que se possa imaginar, podendo provocar desde queimaduras leves na cavidade oral e no trato gastrointestinal, até lesões graves, algumas vezes irreversíveis, com sequelas por toda vida, ou até óbito.

É essencial que os adultos se conscientizem a não permitir que este tipo de substância seja armazenada ao alcance de crianças, e que sejam sempre armazenados em frascos seguros, de preferência com dispositivos que dificultem sua abertura.

  • Em quais casos a criança deve se submeter a exame de Endoscopia Digestiva?

Nos casos de impactação de bateria no esôfago a endoscopia é uma urgência porque a lesão do esôfago se dá de forma muito rápida e perigosa, não sendo necessário respeitar um tempo prévio de jejum. Se uma endoscopia imediata não estiver disponível e se a criança não tiver sinais evidentes de complicações pode-se administrar mel ou sucralfato por via oral, pretendendo revestir a bateria, reduzir a eletrólise e neutralizar a formação de hidróxido enquanto se aguarda o exame.

A Endoscopia Digestiva tem papel importante nas crianças com ingestão de corpo estranho pois oferece o diagnóstico de forma rápida e é capaz de tratar o problema na maioria das vezes.

Alguns corpos estranhos não são radiopacos, ou seja, não são visualizados em radiografias simples, dificultando o diagnóstico.

A endoscopia pode ser realizada em qualquer faixa etária, incluindo bebês, por endoscopistas treinados para realizar exames em Pediatria, usando equipamentos e ambientes adequados a cada faixa etária.

Vale ressaltar que se uma criança permanece por um longo período com o corpo estranho no trato gastrointestinal sem diagnóstico, podem surgir complicações, inclusive com necessidade de tratamento cirúrgico, mesmo em casos que poderiam ter sido resolvidos apenas com procedimento endoscópico se o diagnóstico fosse mais precoce.

Apesar de um levantamento da Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal revelar que 80% a 90% dos objetos ingeridos são eliminados sem a necessidade de intervenção endoscópica ou cirúrgica, destacamos que o cuidado deve ser redobrado com baterias, imãs e objetos pontiagudos e perfurantes.

  • Como prevenir acidentes domésticos desse tipo?

A melhor maneira é supervisionar atentamente os ambientes onde as crianças ficam, retirando objetos ou substâncias perigosos do seu alcance. Os responsáveis devem ter muito cuidado com o ambiente doméstico, em especial quando há irmãos mais velhos.

A indústria também tem um papel importante nos cuidados na fabricação de brinquedos, com orientação adequada da faixa etária e protegendo as baterias em compartimentos seguros e de difícil acesso às crianças. Isto deve ser supervisionado de maneira rigorosa pelas agências regulatórias: mais de metade dos acidentes com ingestão de baterias ocorrem com brinquedos da própria criança.

Campanhas para orientação da população e sobre o descarte adequado desses materiais também são importantes: em torno de 1/3 dos acidentes ocorrem com baterias que as crianças encontram “perdidas”.

Nós, médicos, em especial os pediatras emergencistas e endoscopistas, temos papel fundamental em identificar os corpos estranhos que causam complicações e conduzir o tratamento de forma a reduzir os danos ao paciente.

  • Doutora em Medicina pela UFRJ
  • Médica especialista em Endoscopia Digestiva Pediátrica do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) e do Hospital Estadual da Criança (HEC)